Um Mundo Dividido: O Perigo do Discurso Religioso Dogmático na Política

O discurso religioso dogmático leva parte da sociedade a cenas deprimentes de histeria coletiva e ruptura do tecido social.
É um desafio para nós aceitar opiniões diferentes. O contraditório, ou seja, a oposição de ideias, muitas vezes nos incomoda profundamente. Essa discordância pode gerar reações intensas: o coração acelera, a temperatura sobe, e tendemos a nos afastar de quem pensa de forma distinta. Esse egocentrismo natural dificulta o confronto com perspectivas variadas, tornando a convivência e a evolução humana um desafio em um mundo tão dividido por divergências.

A Incompatibilidade entre Religião Dogmática e Debate

O escritor José Saramago provocava ao sugerir que as religiões, em vez de unir, muitas vezes dividem os seres humanos, e que um mundo ateu talvez fosse mais pacífico. Essa visão, embora radical, aponta para uma questão central: a natureza do dogma religioso. Dogmas são princípios e ideias inquestionáveis, aceitos como verdades absolutas e imutáveis. Eles não admitem o contraditório; para os dogmas, não há espaço para pensamentos diferentes ou debates. Essa rigidez intrínseca os torna fundamentalmente distintos da base do discurso político.

O Exemplo de Bento XVI e a Rigidez dos Dogmas

A vida do Papa Bento XVI, Joseph Ratzinger, oferece um exemplo claro da natureza inquestionável dos dogmas. Como Prefeito da Congregação pela Doutrina da Fé, ele travou intensos debates contra a Teologia da Libertação, que buscava reinterpretar dogmas para aproximar a Igreja da política e resolver injustiças sociais. Ratzinger reafirmou que não há discussão sobre dogmas. A vida material da política não deve ser confundida com a vida espiritual da religião. Essa postura resultou na condenação da Teologia da Libertação, reforçando que os fundamentos da fé não são negociáveis ou passíveis de debate político.

Por Que Misturar Religião e Política é Perigoso?

Se o dogma religioso é imutável e não aceita questionamentos, como ele pode ser integrado ao discurso político, cuja essência é o debate, a divergência e a busca por consensos possíveis? A resposta é simples: não deve ser. A mistura de religião dogmática e política é perigosa porque corrompe o debate democrático. Ela transforma a legítima luta política entre diferentes visões em uma batalha maniqueísta entre o bem e o mal, o divino e o demoníaco. Somente oportunistas buscam essa confusão entre o mundo material e o espiritual, geralmente motivados pela sede de poder.

A Instrumentalização da Fé no Cenário Político Brasileiro

Nos últimos anos no Brasil, presenciamos uma clara instrumentalização da religião por figuras como Jair Messias Bolsonaro e seus apoiadores. Ao invés de construir um diálogo político baseado em ideias e propostas, optou-se pelo caminho mais fácil e perigoso: o uso da fé para conquistar poder. Essa estratégia, ao inserir o discurso religioso dogmático na política, transformou as divergências em uma cruzada moral, dividindo a sociedade entre “Deus” e o “diabo”. O resultado foi a eclosão de cenas de histeria coletiva e a ruptura do tecido social, culminando em eventos lamentáveis como a depredação da Capital Federal em 8 de janeiro de 2023.

Alertas da História: Quando o Discurso Messiânico Leva ao Extremismo

A história nos alerta para os perigos de discursos messiânicos e dogmáticos na política. Não muito tempo atrás, uma sociedade seguiu um líder que utilizava símbolos antigos e uma retórica de bem contra o mal, de luta contra “vermelhos” e “comunistas”, de salvação divina e de supremacia nacional (“Deutschland über alles”). Essa psicologia comunicacional invasiva capturou mentes e corações de pessoas de boa-fé, levando a um passado de vergonha que não deve ser esquecido, mas evitado a todo custo. O objetivo era claro: usar a religião e o emocional para consolidar um poder autocrático.

Um Chamado Urgente à Reflexão da Direita Brasileira

No contexto brasileiro atual, aqueles que se autodenominam de direita cometeram um grande erro ao apoiar e aceitar a instrumentalização da religião por oportunistas do bolsonarismo. Trocaram debates de alto nível sobre conceitos e ideias por um discurso pobre, demagógico e messiânico de medo e de bem contra o mal. Abandonaram o legado de grandes nomes liberais que construíram suas reputações no debate intelectual. É crucial que os pensadores da direita recuperem seu protagonismo, reflitam sobre os acontecimentos recentes e retomem um caminho sério, sem a religião como muleta e sem discursos emocionalmente enganosos.

Rumo a Uma Nação Plural, Laica e Respeitosa

Os verdadeiros líderes políticos e estadistas da direita não podem se restringir a ganhar eleições a qualquer preço, apropriando-se da religião para um projeto de poder. É urgente a reconstrução de uma nação plural, com espaço para direita e esquerda, fundamentada no diálogo, respeito, valores e princípios, e, acima de tudo, laica. Um Brasil de todas as cores, raças, credos e culturas. O legado messiânico do bolsonarismo é uma doença que envergonha a história da nossa direita, ameaçando e agredindo pessoas, e levando a sociedade a uma “cegueira coletiva” por um “messias” que, na verdade, busca apenas a manutenção de um poder autocrático. Somos uma única pátria, um Brasil de todos os povos, que acolhe o contraditório, o diferente e a diversidade, sob o manto principiológico do respeito.

Créditos: Agência Congresso

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